Em dezembro de 1968 a Apolo 8 flutuava pelo espaço para realizar pela primeira vez na história a orbita ao redor da lua. A Nasa, o mundo todo e os astronautas olhavam fixamente, e com ansiedade, para o destino: a Lua. Até que um dos tripulantes, de maneira quase contra intuitiva girou sua câmera em outra direção para filmar o Planeta Terra. Ao fazer isso ele se uniu aos colegas num momento longo de contemplação e presença, um êxtase coletivo que trouxe uma rara sensação de unidade e comunhão com aquela grande circunferência suspensa no ar. Eles vivenciaram uma alteração em seu estado de consciência ao perceber que o que contemplavam era uma linda esfera com tons de azul e branco, sem nenhuma divisão ou linha, um continuum que transmitia unicidade. Um Todo suspenso no ar. Aqueles astronautas nunca seriam os mesmos depois de seu retorno à Terra.
Eles tiveram o privilégio de ver a realidade como é, não como foi inventada e contada para nós. Eles constataram que em nossa morada não existem linhas, fronteiras, que essas são invenções humanas. Nós desenhamos os limites. O ser humano em um momento de sua história – sobretudo a partir do desenvolvimento das primeiras tecnologias e ascensão das civilizações – reforçou as linhas divisórias, engrossou suas fronteiras e exacerbou as divisões olhando para o vizinho como inimigo; inventou uma coisa feia chamada Guerra e passou séculos acreditando que só se prevalece quando o outro é destruído.
O Sapiens parece ter esquecido que nos primórdios de sua existência, o fator fundamental para sua perpetuidade no mundo, como espécie, foi precisamente sua capacidade de se organizar coletivamente, criando fortes laços de conexão e cooperação, compondo robustas narrativas que reforçavam o significado coletivo.
Ao longo da história a mentalidade separatista foi se acentuando, até ganhar um espaço quase absoluto com a narrativa ocidental que uniu racionalidade a individualismo e utilitarismo. O importante é “a minha liberdade, o meu bem estar, os meus interesses, e da minha pequena tribo também (seja ela qual for)”.
Aí veio uma coisa chamada “globalização” e todos profetizaram que o mundo ia ser totalmente conectado, numa grande rede coletiva, uma “aldeia global”. Mas os profetas modernos erraram (mais uma vez) suas projeções e o que vimos foi um planeta mais dividido, com as fronteiras mais fechadas, com o advento de governos nacionalistas e sua aversão ao diferente que vem com a imigração. Paradoxalmente a globalização parece ter nos fechado mais ainda. E a tecnologia que uniria tudo? Nos separou mais em milhares de pequenas tribos, porque nos aproximou de quem é diferente de nós, nos tirou dos nossos guetos e nos mostrou – na nossa time line – quem pensa e vive diferente. Aí vimos e não gostamos, e brigamos, até xingamos, e em muitos casos excluímos da nossa rede alguns “amigos” (inimigos?) virtuais. O mundo “globalizado” e “conectado” vai se tornando um arquipélago repleto de ilhas habitadas por diferentes tribos. Que contradição nem de perto prevista pelos futuristas de plantão (os cartomantes da contemporaneidade)!
Essa mentalidade individualista gerou uma multidão de egos separados do mundo. Uma clara fronteira entre o “eu e o outro”, o “eu e o mundo”. E o subproduto dessa separação chama-se competição. Darwin foi lido parcialmente e escolhido como a referência para o argumento de que “só tenho como sobreviver se eu ganhar de você”, se eu te destruir. Até se cunhou o termo de “darwinismo social”- uma espécie de releitura de Thomas Hobbes, que defendia que os indivíduos são ameaças mutuas: “o homem é o lobo do homem”. Na nossa moderna e eficiente sociedade isso significa tirar a maior nota, ser o primeiro da turma, ou ser um profissional “de sucesso” (um diretor executivo CEO, um empreendedor rico, um artista famoso etc). Prosperar é prevalecer individualmente, é “subir” sozinho pelos degraus da vida.
Mas essa é uma narrativa inventada por alguns, comprada por muitos. E se consolidou no mundo ocidental. É assim que funciona. Ponto. Nos convenceram desde criancinhas que essa é a melhor forma de viver. Até que um dia pudéssemos ver de forma mais crua que isso não é verdade, que essa história foi contada por grupos com intenções muito particulares.
E esse dia chegou…
O vírus nos pegou de cheio! Não em alguns países, mas em praticamente todos deste planeta. De repente nos vimos ameaçados como nunca. Ver as imagens de países de todo o mundo com suas ruas desertas nos fez perceber que estamos vivendo o mesmo drama, estamos confinados globalmente pelo mesmo risco. Temos um inimigo comum. Teria sido melhor entender, como os astronautas, que todos somos uma mesma realidade por habitarmos o mesmo planeta e compartilharmos a mesma humanidade. Mas acabamos chegando à conclusão que estamos juntos porque nosso medo é comum.
E o mais louco é ver que geramos esse inimigo coletivamente! Foram nossos hábitos de descuido com o ecossistema, com a sábia harmonia da natureza, que provocou um grande desequilíbrio planetário, um vírus que pulou do seu mundo natural para um mundo que não é o dele. Fomos eficientes coletivamente para gerar um mal que com certeza não queríamos. É hora de entender que prosperaremos como espécie somente se nos mobilizarmos coletivamente para gerar o Bem que desejamos (pelo menos a maioria de nós deseja). Esse é o melhor momento para resgatar a natural capacidade do Sapiens para a colaboração e a unidade. Essa competência humana é mais garantidora de perenidade do que a de competir. Aliás, pouco se falou de outra obra de Darwin que apontou no ser humano um instinto de compaixão e cooperação que foi fundamental para a evolução da espécie. O filtro de quem o interpretou ignorou essa ideia.
Precisamos inverter a narrativa. Recorrer a mestres da sabedoria, como Aristóteles que definia o ser humano como Ser Político, ou Freud que destacou o instinto gregário como elemento essencial da nossa natureza. É hora de resgatar a ideia de que há algo de transversal que nos une: nossa humanidade. E além dessa conexão humana, somos UM com todo o planeta, com todos os seres que co-existem na Terra. Somos parte da teia da vida, e devemos aprender dos ecossistemas vivos que se perenizam através da dança entre individualidade E colaboração/ unificação .
Samuel Huntington em seu excelente livro “O Choque das Civilizações” defendeu que o único caminho para prosperarmos como humanidade é termos uma espécie de “supra civilização” ou seja, a “civilização das civilizações”, que é precisamente uma instância que une as diferenças (e as respeita!) em uma coletividade que comunga da mesma natureza, da mesma ética. Trata-se de um resgate de grandes mestres como Kant que defendia uma esfera universal de valores e moral pertencente à toda a humanidade. Manter a especificidade de cada país e cultura, mas unidos num universalismo de humanidade e existência planetária. Essa é a Magia da unicidade que os astronautas perceberam do espaço. É o que os alquimistas chamaram de “Unus Mundus”, o Um ao que todos pertencemos.
Mas Sam Huntington parece ser um idealista se olharmos para os políticos e instituições de hoje. Não vemos quase nenhuma articulação eficiente entre os países para superarmos esse mal planetário que nos acometeu. Nenhum dos “Gs” (8, 20 etc) tem conseguido se mobilizar de forma sistêmica para superar essa gigantesca crise. Ao contrário, vemos cenas como o representante do país mais poderoso do mundo gritando “America First” e chamando a pandemia de “Epidemia Chinesa”, tirando a ajuda financeira da OMS. Ele e outros (pseudo) líderes mundiais (sabemos bem o que é isto) são os principais promotores do que Zygmunt Bauman chamou de “estratégia antropoêmica”: quando “vomitamos aqueles que não são aptos a serem nós”.
Não será pelos grandes políticos e poderosos do mundo, ou pelas grandes instituições, que superaremos a narrativa da separação, do individualismo e tribalismo. Terá que ser sobretudo pela liderança sem autoridade, começando com cada um de nós. Olhando para o lado e para fora para ver que aquele vizinho da janela em frente também é um humano como eu, e está vivendo o mesmo drama, tem uma história, um destino parecido ao meu; ambos temos o mesmo objetivo de sair dessa, e só sairemos JUNTOS. Esse é o momento para exercitar a empatia, olhar para o outro como um “eu estendido”.
Essa crise nos convocou a respeitar, como nunca, regras sociais pelo bem comum: distanciamento social, limpeza da cidade, proteção… Vemos também uma injeção de ética e amor! É emocionante ver tantos casos de solidariedade de cidadãos anônimos, voluntários do bem para ajudar quem precisa. Muitos participam de campanhas para ajudar os menos favorecidos. Sem contar o heroísmo dos profissionais de saúde, que se arriscam para salvar milhares de vidas. Vamos mudar a narrativa! Se reforçarmos nossas teias de colaboração vamos “empurrar” e pressionar os grandes centros de poder a também se articularem colaborativamente. A direção será da sociedade para a autoridade formal, e não o contrário.
Ao mesmo tempo, temos que apoiar e divulgar os núcleos de indivíduos e instituições que nos brindam exemplos de colaboração. Os jornais mais diferentes, em alguns países, que publicaram a mesma manchete exortando-nos para vencermos essa batalha juntos. Diferentes estações de rádio que colocaram seus locutores para falar a mesma mensagem, conclamando a união. Os cientistas do mundo inteiro que se uniram – pela primeira vez na história – para trabalhar pela cura da doença. As empresas que estão deixando seu core business de lado por um momento, para produzir respiradores e outros materiais que irão combater o vírus. Empresas do setor de saúde que estão fabricando medicamentos que serão distribuidos gratuitamente para a população. Os ricos que estão doando somas significativas para os menos favorecidos; executivos que estão aceitando diminuir seus altos salários para que não se suspenda a remuneração dos que ganham menos. Parece que estamos entendendo. Continuaremos assim depois da pandemia?
O genial Teihard de Chardin, Palentólogo e Teólogo que viveu no século XX projetou – a partir de seus estudos científicos e reflexões – um estágio superior da existência e consciência, que chamou de “Ponto Ômega”, um campo onde a Unidade e o Todo prevalecerão. As consciências se unirão em uma Consciência Coletiva que será um grande campo unitivo.
Acredito nisso. E acredito que o vírus veio para acelerar essa jornada. Não importa se o ponto de mutação veio pelo medo, o fundamental é aproveitar a oportunidade para não perdermos esse “momento da verdade”.
As utopias não existem para observarmos de longe como destinos inalcançáveis; elas são faróis para começarmos a navegar em sua direção.
Vamos?