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É HORA DE MATAR OS GURUS

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Calma, gente! Obviamente esse título tem um sentido figurado, é uma metáfora.

Há um certo tempo me incomodo com a importância e projeção que estudos do tipo “tendências de futuro” ganham aqui no Brasil. É um tal de dizer como será o trabalho em 5 anos, como as pessoas se relacionarão, o que acontecerá com a economia, enfim, vozes reveladoras do que será fato e realidade amanhã. Pessoas e instituições cravam suas adivinhações como verdadeiros oráculos, por vezes com assertividade inequívoca, com a certeza digna de cartomantes contemporâneos. 

Recebi dezenas de materiais desses nos últimos anos, uns mais equilibrados, trazendo tendências como possibilidades de um mundo complexo que não permite certezas projetivas. Mas outros – os que mais me incomodam – tentam ser proféticos, tipo “vou dar a chave pra você entender o mundo do futuro e poder viver nele”. Dos vários estudos mais pretenciosos como este que recebi antes de março de 2020, NENHUM projetou – nem de longe – o que estamos vivendo neste último ano, nas mais diversas dimensões como saúde, trabalho, política, consumo etc.  Todos se tornaram irrelevantes, obsoletos. Parece que os deuses brincam com esses profetas, mostrando que pretender controlar o futuro por meio de previsões unilaterais e impositivas pode ser, no mínimo, um pecado de arrogância. 

A última dessas projeções assertivas que recebi foi uma espécie de “decálogo” da The Economist – uma das revistas mais prestigiadas do mundo liberal – sobre como será o planeta e a vida na pós pandemia. Um dos tópicos dessa previsão é que estaremos imersos num mundo predominantemente low touch  (dominado pela distância), marcado por poucos encontros e eventos presenciais. Todos viverão muito mais encapsulados em seus notebooks e celulares, realizando quase todas suas atividades via tecnologia, escondidos atrás das telas de seus artefatos. Todos sabemos que o mundo tecnológico/virtual ganha cada vez mais espaço no nosso cotidiano, sobretudo depois da pandemia, mas daí a “cravar” – como faz a revista inglesa – a porcentagem das lojas físicas que fecharão, por exemplo, é um salto muito grande e ousado. 

Há estudos sérios mostrando como as pessoas estão mais sedentas do que nunca de contato físico, de experiências presenciais significativas. E o que dizer dos colaboradores do Google e, pasmem, da ZOOM, que já se manifestaram a favor de que parte da jornada de trabalho seja PRESENCIAL (sim, a galera da ZOOM pediu isso!!). A verdade de tudo isso é que – para o desespero dos que precisam de certezas – NÃO SABEMOS exatamente o que vai acontecer. As variáveis do nosso mundo complexo são inúmeras, mas a revista insiste – no melhor do estilo cartesiano/liberal – em trazer números concretos e fechados, inclusive os anos e semestres em que os fenômenos ocorrerão (oi?).  

Esse material da Economist viralizou, eu recebi de mais de 10 grupos diferentes e de muitos colegas. Sei que alguns deles enviam como conteúdo para ser lido e interpretado, ou mesmo para mostrar o que algumas instituições pensam e projetam. Mas muitos dos remetentes enviam um estudo como este para mostrar algo determinante que deve ser acatado ou “seguido”, uma verdade irrefutável, dada como fato. O que me faz perguntar por que estes futurólogos fazem TANTO sucesso no Brasil. E quando penso nisso não posso deixar de considerar a passividade de um povo que se fez a partir da autoridade formal. A independência do país foi “conquistada” pelo próprio conquistador/colonizador. Patético. Desde nossos primórdios como sociedade a autoridade formal nos diz o que fazer, garantindo um limite muito claro de controle e submissão, que é mansamente aceito por todos. Somos um povo que gosta que nos apontem por onde ir e o que fazer. Parece que nossa vocação é seguir essas indicações, diretrizes, projeções etc. Deve ser por isso que os pseudo coaches (me refiro aos fanfarrões) fazem tanto sucesso no Brasil. E o que dizer dos palestrantes motivacionais rasteiros ou os – agora super em voga – filósofos pop (e pocket) que povoam o instagram dos seus milhares de seguidores com frases feitas, de efeito, lindas de ler, mas longe de provocarem qualquer experiência filosófica? 

Essa sede de guru que o brasileiro tem delega o pensamento crítico, o suor do pensar-viver-fazer para o outro, a autoridade “melhor equipada” para dizer como as coisas são ou devem ser. Assim, quem gosta de ser “seguidor” simplesmente acata, na segurança de que alguém “competente” já disse por onde ir. A doce e crua aventura de viver a vida como ela é, com seus altos e baixos, luzes e sombras, com suas surpresas e desafios emergentes é boicotada por uma adesão passiva a algo que ainda não é.

Tenho voltado a conversar com Nietzsche – um dos meus filósofos preferidos – e hoje revolvi convocá-lo para bater com seu martelo nessa obsessão que temos pelos gurus. O filósofo alemão chamou essas instituições/pessoas poderosas de “ídolos”, grupos ou indivíduos que se autodefinem como incontestáveis e nos dizem o que fazer. Essa inclinação patológica cria o que ele chamou de “força reativa”, aquela que abre mão de fazer história, de criar a realidade que queremos, em nome de uma obediência estéril ao que OUTROS afirmam que será inevitável acontecer. Nietzsche grita pela “força ativa”, a afirmação da vida que queremos e podemos viver, a realidade que temos a possibilidade de criar a partir da nossa VONTADE DE PODER.

Um método que me fez brilhar os olhos foi inventado pelos executivos e consultores que atuaram na Shell da década de 70, o período da crise do petróleo. Nesta metodologia – batizada de “Cenários Generativos” – são mapeados prováveis cenários a partir de tendências observáveis, analisando qual deles pode ser o melhor para aquela coletividade, chegando assim à possibilidade de futuro que aqueles agentes da mudança QUEREM fazer acontecer. É um olhar para o que pode e deve ser mudado, um olhar ATIVO, “poderoso” no sentido Nietzscheano, não passivo ou inerte. É um grande salto da abstração preditiva unilateral para uma declaração de co-criação de futuros desejáveis. Essa é a galera com quem quero atuar!

Inspirado nesses corajosos – e no meu filósofo preferido – em vez de abstrair e pré-definir o que IRÁ acontecer, minha proposta é que façamos diferente: 1) ver o que ESTÁ acontecendo aqui na nossa frente; 2) qualificar o que está bem e queremos manter e o que não está bem e queremos mudar; 3) definir as ações para manter/mudar o que queremos; 4) AGIR individual e coletivamente para que essa nova realidade aconteça. 

Que tal atuar em agendas urgentes, como a pandemia que devasta o país, os 14 milhões de desempregados e os 25 milhões de famintos que habitam hoje o Brasil? Mas esse é um roteiro para TODOS os aspectos da nossa vida. Penso, por exemplo, no desafio atual do RH de muitas empresas: em vez de cortar o trabalho presencial depois da pandemia porque “A Economist disse”, por que não olhar para o sistema e buscar – junto aos colaboradores – o que pode ser o melhor para a cultura e para o negócio? É um caminho pragmaticamente mais útil e adaptativo do que ficar anestesiados e simplesmente agir em função do que os “eleitos” disseram que vai acontecer. 

É hora de matar os gurus. Mas para isso temos que matar a pandemia de inação e dependência na qual mergulhamos. É essa inercia que cria os gurus…e os Mitos! Se pedimos inspiração a Dionísio, o Deus grego da paixão, do desejo e do lúdico, talvez consigamos essa “força ativa” à qual Nietzsche se referia. Mais vontade de poder e menos racionalização futurística é o antídoto para nossa letargia atual! Essa é a potência que necessitamos para quebrar as bolas de cristal arbitrarias e deterministas que tomaram conta do mundo de hoje. Vamos quebrar juntos as tábuas dos mandamentos que esterilizaram nossa capacidade de fazer história. Vamos criar juntos o mundo que queremos, seja ele low touch, high touch, ou um meio termo entre os dois. É urgente e imperioso sairmos da inercia em que nós mesmos nos colocamos. Os gurus espernearão, mas nós floresceremos como espécie mais evoluída, consciente e ativa. 

Quem se anima?

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